Paisagem Velada

“It is difficult to speak rigorously of the image. The image is the duplicity of revelation. The image is what veils by revealing; it is the veil that reveals by revealing in all the ambiguous indecision of the word reveal.”

Maurice Blanchot

“Paisagem Velada” apresenta parte do portfólio fotográfico que Nelson Miranda tem vindo a construir em torno de edifícios industriais, comerciais e institucionais que se encontram, atualmente, em estado de completa ruína ou avançada degradação.

Espera-se de uma reflexão sobre qualquer fotografia que se debruce sobre a relação entre a imagem conseguida e o modelo/objeto captado (o referente). Espera-se, ainda, que essa reflexão tenda a esclarecer o grau de proximidade entre  ambos, uma vez que – quer se queira, quer não – o princípio da leitura da imagem fotográfica permanece alicerçado na co-presença: porque o funcionamento do dispositivo fotográfico obriga à comparência do referente no momento do disparo, crê-se que a imagem comprova, inegavelmente, a sua existência.

Assim, ao contrário do que acontece com os restantes modos de representação nos quais o juízo tende a ser de ordem conceptual ou estética, a apreciação de uma fotografia convida a uma prática de reconstrução mental da totalidade do ‘quadro-tempo’ que levou àquele momento particular. Curiosamente, o encontro com ruínas arquitetónicas parece espoletar um processo semelhante no observador: uma tentativa de reconstrução, primeiro das linhas gerais dos edifícios, depois da sua possível utilização e finalmente das circunstâncias que levaram à degradação. 

Em “Paisagem Velada”, ambos, imagem (fotografia) e  referente (os edifícios em ruínas) pertencem à categoria semiótica do índice. Ambos apresentam ‘aquilo que esteve lá’: a imagem remete para a existência da ruína e esta, por sua vez, para a existência do edifício. As fotografias contêm dois passados distintos: o passado do ato fotográfico e o passado do qual a ruína é vestígio. A observação de “Paisagem Velada” envolve um deslocamento temporal duplo, inicialmente pelo reconhecimento do dispositivo fotográfico, e, logo em seguida pelo exercício de reedificação mental das ruínas, inevitável no ato da sua contemplação.

Nas fotografias que Nelson Miranda apresenta o tempo da imagem recolhe, em analepse, ao tempo da memória/imaginação, o qual permaneceria como foco de leitura não fosse o facto de, a maioria das imagens ser rapidamente resgatada para o seu presente pelas evidências de um fora-de-campo, verde, vibrante e vivo que se insinua por entre as brechas das ruínas. A importância dos elementos que desvendam aquilo que está além da cena enquadrada pelo visor da câmara fotográfica concorre com o assunto principal das imagens. Janelas, portas ou outras aberturas que permitem a entrada da luz e da natureza assumem, por vezes, o papel de protagonistas, sobrepondo-se aos elementos arquitetónicos, dissipando a sua atmosfera fantástica e impondo, deste modo, uma natureza quase documental às fotografias.

A dinâmica entre os elementos humanos e naturais enriquece a interpretaçao do título da mostra: “Paisagem Velada”. Se, por um lado, a expressão remete, desde logo, para o abandono a que os edifícios foram sujeitos, inutilizados e arredados das rotinas sociais, por outro lado, as ruínas, evocando uma memória, atuam como algo que impede o acesso ao (tempo) real, ao aqui e agora corporizado nos elementos naturais, velando-o. Surpreendentemente, encontramos nesta leitura um novo paralelismo entre a representação das ruínas e a fotografia em si mesma, pois o exercício de enquadramento opera via exclusão, velando o que ‘não interessa’ aos olhos do observador.

Já Maurice Blanchot recorreu à metáfora do véu para abordar a complexidade da imagem: “É difícil falar com rigor da imagem. A imagem é a duplicidade da revelação. É a própria coisa que vela ao revelar, o véu que revela ao revelar, (…)”1. Faz parte da natureza da imagem, de qualquer imagem, o efeito de ocultação da complexidade do seu assunto real, a fim de lhe impor uma leitura, uma perspetiva, uma ordem. A imagem oculta (vela) porque demonstra (revela) um ponto de vista. Porém, faz também parte da natureza da imagem um eterno retorno ao referente no seu estado dito essencial ou pré-imagem: “A imagem é imagem via a sua duplicidade, não sendo um duplo do objeto, mas uma divisão inicial que permite que a coisa seja figurada, é um desdobramento, uma reviravolta, uma versão sempre em processo de inversão (…)”2.

Vera Carmo

1 Blanchot, M. (1993). The infinite conversation (Vol. 82). U of Minnesota Press. Chicago. Traduçao livre.

2 idém

Vera Carmo desenvolve projetos de curadoria independente e, assumiu, desde 2017 a direção artística do Espaço Campanhã. É co-editora da publicação trimestral MOLA, dedicada à divulgação e receção crítica da atividade dos espaços culturais independentes da cidade do Porto. Licenciada em Artes Plásticas pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto. Mestre em Estudos Artísticos – Estudos Museológicos e Curadoriais pela mesma instituição. Doutoranda em Arte Contemporânea no Colégio das Artes da Universidade de Coimbra.