Em 1995 Hal Foster escrevia o artigo O artista como etnógrafo1, questionando os problemas decorrentes do posicionamento de certos artistas do lado da “alteridade cultural”2. Para além de identificar um conjunto de problemáticas que essa atitude suscita, este artigo tem ainda o mérito de chamar a atenção para a “viragem etnográfica” da arte em diferentes períodos históricos (tendo como um dos precedentes, por exemplo, o surrealismo dissidente de Georges Bataille e Michel Leiris), temática que é pertinente retomar sempre que os universos da arte e da etnografia se sobrepõem.
Vem isto a propósito da última obra de Nelson Miranda (1979), EIRA. Arquiteto de formação, desenvolve desde 2013 um trabalho fotográfico que se tem vindo a consolidar ao longo dos anos, e que, à semelhança de outros fotógrafos contemporâneos, interseta os territórios artístico e documental. Tendo-se já anteriormente dedicado a fotografar espaços que perderam a sua função inicial, o seu projeto mais recente centra-se nas eiras, construções essenciais aos ciclos agrícolas e ao modo de vida rural. As eiras (do latim area) são, supõe-se, tão antigas quanto a prática da agricultura, constituindo, na sua forma primordial, espaços amplos e planos ao ar livre que cumpriam determinadas funções, nomeadamente a secagem e debulha de diferentes tipos de cereal. No contexto português, as eiras são mais comuns no norte do país, e são construídas com lajes de granito, xisto ou, na sua versão mais recente, betão, sendo que este último material cobre muitas vezes eiras previamente existentes. Para além da sua utilização no cumprimento de trabalhos agrícolas, estes espaços tornavam-se frequentemente em lugares de sociabilidade, já que eram palco para diversas atividades lúdicas, tais como missas, bailes ou outras celebrações. As desfolhadas3, por exemplo, decorriam nas eiras, mostrando como as formas vernaculares de organização do trabalho agrícola eram capazes de desempenhar simultaneamente uma função técnica e uma função social, através da materialização do corpo coletivo. O mesmo acontecia com o processo de malhar4 os cereais ou de lavrar a terra, gestos muitas vezes acompanhados por cânticos (os denominados cânticos de trabalho) que contribuíam para o cumprimento eficaz das tarefas, já que os movimentos dos camponeses eram feitos ao ritmo das entoações. São vários os testemunhos que destacam, entre quem trabalhou no campo, as alegrias de certas tarefas, acompanhadas de música, dança e vinho, muito vinho. Era a vida social a forçar o desenvolvimento de relações comunitárias: a força dos braços era uma mercadoria preciosa, que solicitava requisições e empréstimos, numa lógica de reciprocidade.
Como tantos outros elementos que em tempos serviram a ruralidade portuguesa, a maioria das eiras foi caindo em desuso, tornando-se obsoleta. Nos dias de hoje, a eira tende a remeter para uma temporalidade passada – e aí, curiosamente, este projeto aproxima-se das anteriores temáticas que têm interessado a Nelson Miranda. É esta abordagem da eira enquanto despojo ou reminiscência que detetamos nesta obra, que a toma como um lugar intersticial – entre o que foi em tempos, na sua função primordial, e o que é ou poderá ser nos dias de hoje. Neste sentido, o seu trabalho consubstancia uma interrogação destes espaços, convidando-nos a encará-los e a refletir sobre eles, na sua dimensão passada, presente e futura.
Particularmente curioso nesta obra é a sua natureza biográfica: o projeto surgiu na eira dos pais de Nelson Miranda, situada em Laundos, Póvoa de Varzim, quando começou por fotografar quer a própria eira, quer um conjunto de objetos “que por ali se encontravam”. Este conjunto de imagens dos objetos, talvez o núcleo mais significativo do projeto, remete para a fotografia de inventário em contexto museológico, aludindo mais uma vez ao carácter destes elementos enquanto despojos que importa abordar e interpretar. Porém, e ao contrário da fotografia de inventário mais convencional, que recorre a fundos neutros, vemos como os objetos são fotografados na própria eira, conectados e integrados nos seus contextos de uso e circulação. E se nos detivermos nos próprios objetos que Nelson Miranda decidiu fotografar, identificamos a importância da deriva biográfica: não estamos perante o conjunto mais padronizado de objetos da ruralidade portuguesa, que tanto marcaram as representações visuais e etnográficas do mundo rural ao longo do século XX, como as alfaias, os cestos, as olarias, retratados no seu esplendor. Alguns dos objetos fotografados estão gastos ou quebrados, e outros apresentam-se na sua singularidade formal, já que foram construídos pelo seu pai para desempenhar determinadas tarefas. São objetos únicos, idiossincráticos, e não objetos modelo ou exemplares museológicos. Neste sentido, como referi já noutro lugar5, esta obra do autor concorre para o alargamento e complexificação das representações visuais da ruralidade portuguesa, rompendo com as formas romantizadas da construção do rural que circularam ao longo do século XX português.
O que começou como um registo fortuito, motivado por uma curiosidade circunstancial, foi aos poucos ganhando a forma de projeto artístico. Ao registo dos objetos seguiram-se outros desdobramentos, que contribuíram para uma quase antropologia das eiras. Os seus pais foram fotografados no desempenho de alguns trabalhos agrícolas, e os seus gestos registados; convocou-os igualmente para um conjunto de conversas sobre o papel da eira e as tarefas que aí se realizavam, no passado e no presente, que gravou e editou. O processo de produção e criação foi ainda acompanhado e “contaminado” pela realização de pesquisas entre arquivos fotográficos sobre a eira, no contexto do qual o autor se deparou, entre outros documentos, com as gravações de Michel Giacometti na série Povo Que Canta6, que acabou por integrar o seu projeto. O que lhe terá agradado no trabalho deste conhecido etnógrafo, composto por registos visuais gravados sobretudo na década de 1970? Provavelmente, arrisco dizer, o que eles mostram da vida nas eiras, ou seja, o seu “objeto de pesquisa” em tempos da sua plena funcionalidade. A vivacidade das imagens de Giacometti (o som, o vigor dos movimentos) contrasta com algumas das fotografias que Nelson Miranda realiza da “sua” eira, representada com uma certa crueza – detetada igualmente nas fotografias dos objetos – que o uso do preto e branco vem reforçar. Neste contexto, questionamos o seu posicionamento perante o universo sobre o qual se debruça, já que o projeto revela simultaneamente a familiaridade e a estranheza do autor perante a eira e os seus objetos: cresceu neste meio mas cedo dele se distanciou, desfamiliarizando-se destes elementos, que “redescobre” agora, a partir do seu olhar citadino, na conjuntura de um encontro prolongado com as suas origens rurais que a pandemia acabou por proporcionar.
O recurso a estas diferentes dimensões ou desdobramentos do seu projeto – condensados em imagens e montagens de elevada qualidade plástica, que de resto o autor já nos habituou – permite-nos retomar a reflexão sobre as possíveis relações entre a arte e a etnografia, que o já mencionado texto de Hal Foster convoca para o mundo da arte. Ao contrário dos exemplos que Hal Foster aponta, porém, Nelson Miranda não pretende colocar-se do lado da alteridade, já que trata da sua própria herança cultural – ainda que, como o dissemos já, interpela este passado com uma certa estranheza. É o olhar inquisitivo deste projeto que o aproxima da perspetiva etnográfica ou antropológica, a par do ímpeto documental subjacente e transversal, visível quer nas suas fotografias-inventário, quer na pesquisa de arquivo, quer na gravação dos testemunhos orais.
Mas esta “viragem etnográfica” da sua obra agudiza-se ainda mais quando reconhecemos que a etnografia portuguesa se debruçou, durante praticamente toda a sua existência, sobre o mundo rural, produzindo imagens que muito têm contribuído para uma certa ideia de ruralidade, onde se destaca precisamente o trabalho de recolha que Giacometti realizou e que Nelson Miranda escolheu incluir. Ao “citar” Giacometti, o autor reconhece o peso da construção historiográfica das imagens do mundo rural português, dialogando com ela, talvez desafiando-a.
De facto, se realizássemos uma hipotética história das imagens do século XX português, veríamos como o mundo rural ocuparia nela um lugar de destaque, passando pelas representações do Estado Novo, pelo neo-realismo e pela recente obsessão pelo património nacional – movimentos que, apesar da sua heterogeneidade, competem entre si na representação da “verdadeira” ruralidade. Curiosamente, a arte contemporânea portuguesa (se excetuarmos o cinema) tem-se debruçado pouco sobre o mundo rural, talvez porque a sua emergência se efetivou num esforço de internacionalização e cosmopolitismo, onde as marcas da ruralidade constituíam precisamente os elementos que se procurava ultrapassar. Esta obra de Nelson Miranda vem assim ocupar um território que, tirando algumas exceções, só agora começa a ser abordado no contexto português – não por acaso por uma geração mais jovem – , assente na indagação da nossa herança rural e dos seus despojos. Como encarar estes elementos? O que fazer com eles? Como qualquer trabalho pertinente, esta obra não nos dá uma resposta, mas tem o mérito de propor e adensar estes questionamentos, abrindo caminho para pensar a nossa relação com o mundo rural na contemporaneidade.
Maria Manuela Restivo
1 Publicado em 1996 no livro The return of the real, October Books.
2 Na aceção de Foster, alteridade cultural refere-se ao outro cultural ou étnico.
3 Chamavam-se desfolhadas ou esfolhadas à tarefa de retirar as folhas das espigas do milho, normalmente feita em grupo.
4 Bater nos cereais com vista à separação do grão e da palha.
5 Restivo, Maria Manuela. 2022. “O Imaginário Rural na Criação Artística Contemporânea”. Revista Brotéria, Vol. 194-5/6.
6 Giacometti, Michel, 1973. “Povo Que Canta – Cantos de Trabalho na Malha”, RTP1, p&b, som, 28’44’’.