Regresso e abandono

A história conta-se em poucas linhas. Em 1984 o emigrante português na Venezuela Manuel de Oliveira, originário de Vila do Conde, funda com outros sete emigrantes o “Lar do Emigrante Português no Mundo”, no lugar de Covelas. As obras de construção, ainda ilegais, iniciam-se em 1984. Trata-se de edificar  um projecto urbanístico de grande envergadura que incluía uma Praça das Comunidades, o Monumento ao Emigrante, um Restaurante, o Pavilhão da Madeira, um  Pórtico de Entrada, a Casa de Chá, dois Campos de Ténis, a casa Santana, um Pavilhão dedicado aos Açores e três torres com dezasseis pisos cada, o único projecto que não seria aprovado pela Câmara Municipal de Santo Tirso. Ao longo dos dezoito anos que durou este empreendimento foi construída uma espécie de cidade-satélite, ou metrópole, à qual haveriam de regressar os emigrantes portugueses no final da sua vida de trabalho.

O projecto que acabará por falir em 2002 por falta de recursos financeiros é uma combinação da “casa do emigrante” com um parque temático, um resort e, quer no projecto, quer nos ornatos exteriores, evoca o Portugal (emigrante) dos Pequeninos, um parque concebido durante o regime salazarista que constituía uma peça fundamental da ideologia nacionalista do regime na transmissão de valores, de gosto e de uma estética com óbvios propósitos de propaganda. À parte esta configuração, o construtor desta fundação insistia numa ideia de partilha e de generosidade para com todos os emigrantes regressados, mas também para com os portugueses que não tivessem tido o sucesso deste empresário. 

O que levará Nelson Miranda, um fotógrafo de formação em arquitectura a realizar toda uma série de fotografias sobre este caso de um projecto falhado que, apesar da sua dimensão, é há muito um conjunto de prédios em derrocada, um conjunto de destroços onde se acumula o lixo, dejectos de animais, paredes vandalizadas por grafittis, dos quais muitos símbolos nazis, decorrentes com certeza de encontros sorrateiros de grupos de extrema-direita e, no exterior,  estátuas corroídas pelo tempo e má conservação? 

O que podemos ver nestes destroços arquitetónicos? Ruínas e fragmentos de um projeto porventura utópico, de construção de um espaço de acolhimento e bem estar que projetasse a imagem do mito do emigrante que regressa vencedor à sua terra natal, de onde partiu anónimo e pobre, criança ou adolescente. 

Este imaginário de sucesso que se pretende inequivocamente afirmar, será concretizado na construção de um imponente empreendimento, cujo traçado é estranho à paisagem local, como uma radical afirmação do novo estatuto do emigrante regressado. E estas terão sido as razões do trabalho fotográfico. Neste trabalho de campo de Nelson Miranda destacam-se dois aspectos que é importante considerar. Um primeiro é o interesse do fotógrafo, já visto em trabalhos anteriores, em destacar as construções abandonadas que geralmente estão para lá dos limites das auto-estradas, em zonas que deixaram de ser de fácil acesso – o país dos edifícios falhados que por isso não foram classificados, mas que, pelas razões contrárias ao desejado, possuem um caráter de património material e simbólico. Neste caso concreto não são só as construções que faliram. Falhou a ideia do projeto utópico de um  Portugal de nostalgia, com os seus símbolos, narrativas e retórica, que no imaginário saudoso do emigrante ficaram aprisionados no tempo, como o cenário de um país ideal, alheio à realidade da narrativa nacionalista e à vida difícil que os levara a emigrar.

Um segundo aspeto a destacar no trabalho de Nelson Miranda, é a reflexão política que decorre das imagens dos espaços que capta nas suas fotografias. Espaços que se esvaziam e afastam das suas funções de origem, passando a ter uma utilização marginal, onde o que resta de suportes parietais é preenchido por grafittis.  As suas imagens de grafittis com símbolos nazis, denunciam o modo como o extremismo se vai expressando. Por toda a Europa, em edifícios abandonados, nomeadamente construções industriais, os grupos neo-nazis marcam terreno, ocupando estes espaços como territórios de guerra. 

O documento visual de Nelson Miranda sobre a Fundação Lar do Emigrante português revela também as fronteiras entre a brutalidade do betão armado e do ferro inertes e sem sentido naquele abandono lúgubre e a vitalidade da flora, da floresta e da natureza iluminadas pelo trabalho do fotógrafo.

António Pinto Ribeiro

António Pinto Ribeiro (1956, PT) é investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Foi diretor artístico e curador responsável em várias instituições culturais portuguesas, nomeadamente da Culturgest e da Fundação Calouste Gulbenkian. Os seus principais interesses de investigação desenvolvem-se na área da arte contemporânea, especificamente africanas e sul-americanas. Das suas publicações destacam-se: os seus últimos livros de autor Peut-on Décoloniser les Musées? (2019), “África os quatro rios – A representação de África através da literatura de viagens europeia e norteamericana” (2017) e a organização dos dois volumes “O Desejo de Viver em Comum” (2018).